Outro texto originalmente publicado no Alma de Viajante. Desta vez sobre Yangon, a antiga capital de Myanmar e a sua maior cidade.
Só quando cheguei a Yangon, consegui perceber o caldeirão étnico, cultural e religioso que é Myanmar (a antiga Birmânia). Se tivesse olhado para o mapa com mais atenção, facilmente teria percebido de onde ele vem. Com a Tailândia e o Laos a leste, a China a nordeste e a Índia e o Bangladesh a oeste, fica claro que este é um país de charneira entre regiões com identidades muito fortes e distintas.
Talvez advenha daí o facto de ter oito etnias “oficiais”: os Bamar (a maior das etnias e de onde vem a designação de Burma, o nome do país no tempo dos ingleses), os Kachin, os Kayah, os Kayins, os Chin, os Mon, os Rakhine e os Shan (estas, por sua vez, dividem-se em 135 grupos étnicos reconhecidos oficialmente e muitos outros por reconhecer), com hábitos, culturas e, inclusivamente, línguas bem distintos.
Todavia, talvez por estar a viajar por Myanmar há apenas algumas semanas, ainda não tinha sido capaz de detetar estas diferenças – causas dos problemas internos que, infelizmente, têm posto Myanmar nas notícias.
Julgo que é por ter as suas regiões tão demarcadas que não me apercebi destas diferenças, mas ao palmilhar as ruas da baixa de Yangon estava igualmente a percorrer as várias regiões do país, agora condensadas em algumas avenidas e nas suas transversais.
Subtilmente, os longis transformam-se em saris, as especialidades dos restaurantes passam dos noodles aos caris e as feições das pessoas vão mudando em conformidade. Foi quando tudo se tornou claro. Como se estivesse a ler um bom manual de instruções (daqueles com bonecos).
Uma outra forma como se reflete esta multiplicidade cultural, porventura uma mas mais marcantes, é na variedade de lugares de culto que a Yangon possui.
Sendo Myanmar um país maioritariamente Budista (da escola Teravada), estes templos têm primazia na cidade. Não é exagero dizer que há uma pagoda, uma stupa ou um mosteiro em cada esquina. Entre eles, a Shwedagon Pagoda é rei (ou rainha?).
É a mais famosa do país e os orgulhosos cidadãos de Yangon dirão ser o mais importante templo budista do Mundo. A sua stupa principal, com 2.500 anos, é um edifício de uma portentosa riqueza, forrado com toneladas de ouro e milhares de pedras preciosas. Mas as suas verdadeiras riquezas, quatro relíquias de quatro diferentes Budas, estão encerradas no seu interior e inacessíveis aos visitantes.
Mais a Sul, na baixa de Yangon, no meio de uma das suas principais rotundas, fica a Sule Pagoda – para mim, um dos mais belos templos budistas de Yangon. Ali passei umas horas a observar os intrincados trabalhos em talha dourada que cobrem as pequenas stupas e pórticos. Também fiquei, especado, sob o céu nublado, típico da época das monções, a fotografar um bando de pombos que voava junto à cúpula da pagoda (mas isso já são devaneios de fotógrafo).
Mesmo ao lado fica a Bengali Sunni Jameh Mosque, a única mesquita Sunita da baixa de Yangon. Embora ofuscada pelo brilho da Sule Pagoda, valeu a pena subir a sua escadaria para sentir a radical mudança de ambiente apenas numa dezena de metros. A decoração da mesquita, simples, até austera, não podia ser mais contrastante com o ouro, estátuas, leds e néons coloridos do templo budista.
Além do mais, na mesquita imperavam as barbas e as túnicas (do tipo shalwarqamiz) que esperamos encontrar no Paquistão ou na Índia. E aquela era apenas uma das várias mesquitas deste bairro (outras por onde passei, mas por estarem fechadas não cheguei a entrar, são a Moja Sunni Mosque e a Mogul ShiahJama Mosque).
Na verdade, ao passear na zona da Maha Bandula road e nas suas transversais, pude sentir, claramente, as influências indianas a cada metro percorrido. Daí não ter estranhado deparar apenas com templos Hindus ou Muçulmanos. Podia ouvir o chamamento dos muezzin a serpentear pelas estreitas ruas do bairro, enquanto admirava as coloridas pirâmides dos templos hindus.
Foi aliás num deles – o de Kali – onde vi um revelador sinal de mistura étnica. Uma jovem de etnia chinesa a fazer uma oferenda num templo tipicamente indiano. Os templos de Gabesh e o Sri Varatha Raja Perumal merecem também uma visita.
Um dia, bem para a zona oeste de Yangon, já em Chinatown, espreitei para o pátio do pequeno templo de Keng Hock Keong e vi uns homens sentados, tranquilamente, à volta de um tabuleiro a jogar. Aproveitei para espreitar e fugir do buliço das ruas. Apesar de também ser um templo Budista, seguem a escola Chinesa, onde o culto é muito diferente dos templos tradicionais do resto do país. A atmosfera é muito mais tranquila. Mais “zen” para um leigo como eu. O ideal para me sentar num degrau a fazer uma pequena pausa antes retomar o caminho.
Calcorreei, durante vários dias, estas ruas desde o nascer do sol até bem depois de ele se pôr. Não há metro de passeio que não seja ocupado por vendedores ambulantes.
À hora das refeições, o alcatrão é invadido por mesas de pequenos restaurantes de rua. O trânsito da que julgo ser a única cidade asiática onde as motos estão proibidas, é sempre intenso, e quando se lhe junta uma pitada de chuva das monções, fica simplesmente infernal.
A cidade consegue ser tão intensa que, por vezes, o cérebro pode sentir-se esmagado com tantas solicitações sensoriais. Yangon não é, certamente, a mais magnífica cidade asiática. Mas não conheço muitas cidades com tanta vida de rua como a antiga capital birmanesa.
Se a isto somarmos mercados vibrantes, monumentos impressionantes, um povo afável e curioso e poucos turistas, ficamos com razões mais que de sobra para incluir Yangon num roteiro das cidades a não perder no Sudeste Asiático e embrenhar-se do caldeirão de culturas proporcionado pela urbe maior da antiga Birmânia.
December 30, 2015