A história recente do Camboja é difícil de aceitar (talvez o termo certo seja digerir). No entanto, isso não é razão para, quando viajamos, saltarmos por algumas situações mais duras. Viajar não é apenas ver belos monumentos, dormir em hotéis confortáveis e jantar principescamente. É, acima de tudo, viver situações que nos marcam para sempre. Umas positivas. Outras negativas.
Esta é uma delas relatada no Alma de Viajante e que aqui reproduzo.
Uma sala quase vazia. As paredes cheias de um angustiante nada. Apenas uma cama ferrugenta com correntes e algemas à cabeceira. No pavimento uma mancha cor de sangue. Será mesmo? Pessoas que entram e saem num silêncio profundo. No chão um simples xadrez de mosaicos laranja e branco.
Bem longe, uma sala cheia de crianças. Na parede um quadro de ardósia. As paredes cheias de posters, desenhos e alegria. Uma meia dúzia de filas de carteiras. É intervalo. Uns miúdos gritam, outros correm pelos corredores. Meninas, sentadas, conversam animadamente. No chão um simples xadrez de mosaicos laranja e branco.
Duas salas quase iguais. A primeira em Phnom Penh, na prisão de segurança S-21, uma escola onde as salas foram adaptadas para interrogatórios no tempo dos Khmer Vermelhos. Desde essa altura assim ficou, pois escola nunca mais poderá voltar a ser. Foi reconvertida no Museu Tuol Sleng para nos recordar o que nunca deve ser esquecido.
Não é comum, mesmo para quem o viveu, saber a duração exata de um regime político. Mas qualquer cambojano sabe que este perdurou por três anos, oito meses e vinte dias. Tempo suficiente para esvaziar as cidades, matar milhões à fome e massacrar outros milhares. Quando os Khmer Vermelhos foram expulsos do poder, um terço da população do país tinha padecido.
A outra sala fica também numa escola. Mas na pequena cidade de Battambang, onde aproveitei a minha estada para, dentro do possível, conhecer melhor a realidade do Camboja. Visitei templos, aldeias e também escolas. Graças a um condutor de tuk-tuk com um inglês admirável, escutei histórias de vida (desde a guerra do Vietname à actualidade) e testemunhei a dificuldade com que vive a maioria dos cambojanos. Mas ouvi, repetidamente, que o pior já passou, vi que o horrível passado foi aceite com uma serenidade budista, encontrei esperança e uma enorme vontade de mudança.
Escutei também, numa gruta usada pelos Khmer Vermelhos como campo de extermínio, os relatos de um sobrevivente desses tempos. Numa voz serena, este guia turístico, contava a um grupo as suas provações durante aqueles anos. A um canto, resguardado pelo escuro da gruta, fiz as contas. Tinha a minha idade.
Dias depois, já em Phnom Penh, eu e o Gonçalo, companheiro de viagem, fomos bem cedo visitar os Campos da Morte (o local usado como campo de extermínio na capital cambojana) e depois a prisão S-21. Nesta manhã pensava que ia mentalizado. Achei que mais forte que a gruta de Battambang seria difícil. Enganei-me.
No final da manhã, tentámos trocar algumas palavras sobre o que vimos, o que ouvimos (nos áudio guias) e o que sentimos. Balbuciámos umas palavras. Mas não consegui encaixar, se é que é possível encaixar, a dimensão do genocídio cambojano. Certos graus de magnitude vão além da minha compreensão. Apenas o final do dia, com vista para as animadas margens do Mekong, repôs alguma tranquilidade na minha mente.
Não esquecerei aquela manhã passada nos Campos da Morte e na S-21 e as horas passadas na escola em Battambang. Mas, acima de tudo, senti esta experiência como um vislumbre das duas faces da moeda que é a raça humana (talvez yin e yang seja mais apropriado). De como é possível um pequeno grupo de homens impor, em tão pouco tempo, uma mudança inimaginável numa sociedade. Um dia temos uma animada sala de aulas; no dia seguinte, no mesmo local, uma sala de tortura.
April 14, 2016